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Protocolos éticos e táticos da polícia: especialistas analisam mortes de civis


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Em meio a maior crise sanitária dos últimos 100 anos e do século XXI – causada pela pandemia da Covid-19 -, as forças policiais brasileiras sofrem com uma crise de transparência que estimula a violência em territórios pobres e periféricos , em sua maioria compostos por pessoas negras. Especialistas ouvidos pelo iG explicam quais são os procedimentos padrão adotados pelas polícias estaduais em sua atuação; e que não são expostos de forma clara aos cidadãos.

O estado do Rio de Janeiro desponta como o estado mais sintomático da crise de violência por conta do crescimento exponencial da letalidade policial em seu território, bem como pela repercussão nacional.

No ano de 2019, as forças policiais do Rio de janeiro mataram 1814 pessoas , o maior número em 30 anos. Dentre os mortos pela polícia, 86% são negros, mesmo com a população negra do estado correspondendo a 51% dos cidadãos. Os dados são da Rede de Observatórios da Segurança.

Em meio à pandemia, foram registradas 12 mortes de crianças em confrontos envolvendo policiais , apesar da vigência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 – conhecida como ” ADPF das favelas ” – que proibiu a realização de operações policiais em terrrtórios periféricos do Rio durante a pandemia.

Protocolos padrão e falta de transparência

O professor Leandro Piquet Carneiro, 56 anos, coordenador da Rede Interamericana de Desenvolvimento e Profissionalização Policial da Universidade de São Paulo, explica que cada estado brasileiro possui os próprios regramentos de adoção dos Procedimentos Operacionais Padrão (POPs) para a realização de ações, operações, blitzes e incursões.

Leandro explica que Polícia Militar do Estado Rio de Janeiro (PMERJ) permite que cada unidade da corporação adote as próprias POPs para assuntos diferentes. Além disso, o material que explica quais são os procedimentos da polícia no estado são classificados como “reservados”, portanto, inacessíveis ao público. Caberia ao Ministério Público pressionar por transparência.

“Não há nenhum aspecto positivo para a sociedade em tratar esses procedimentos policiais como secretos . A alegação de que os infratores iriam usar essas informações para escapar da polícia é um desrespeito à opinião pública”, afirma o professor.

“Qual a razão, além do mais baixo corporativismo , para não ser transparente com relação à forma como a polícia deve abordar suspeitos, sobre como organizar blitzes ou operações? Os princípios e o modelo de operação precisam ser conhecidos e avaliados pela sociedade”, defende.

O professor elenca os três principais erros cometidos pelas corporações e pelos agentes de segurança pública que acabam causando a morte de civis durante ações:

  • planejamento e inteligência insuficientes,
  • operações mal executadas por falta de capacidade técnica
  • falta de supervisão interna e externa

“A polícia militar do Rio de Janeiro não é apenas desorganizada e mal gerida , é também mal preparada tecnicamente. Internamente, a corregedoria da PMERJ gosta de punir o policial que envia um relatório mal feito, que está com o uniforme errado ou que errou uma prestação de contas, mas não faz quase nada contra os que abusam da população e cometem crimes, pouco investiga e não sai nas ruas fiscalizando os policiais, como faz a PM de São Paulo”, defende.

“O Ministério Público, que tem a missão constitucional de exercer o controle externo das polícias , parece indiferente ao que acontece nas comunidades mais afetadas pela violência policial, não monitora os problemas, raramente investiga, ou apresenta denúncias contra policiais”, complementa.

Responsabilidade pela violência

O Rafael Alcadipani, de 43 anos, professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destaca o comportamento de individualização das ações violentas, e quase nula responsabilização da cadeia de comando pelos erros cometidos durantes as operações policiais, inclusive quando há mortes de agentes de segurança em confrontos.

“Em qualquer país sério do mundo, se uma criança fosse morte por conta de uma ação policial, caia o chefe da polícia e o chefe da segurança pública daquele estado. A responsabilização no Brasil sempre acaba ficando para o agente. Tenta-se achar falhas na conduta específica do agente , falhas que nunca são escaladas para o resto da corporação. Tentam sempre levantar a ideia da maçã pobre , aquele mal policial que teve uma ação equivocada, mas não se analisa o sistema e cadeia de comando “, analisa.

Nesse sentido, José Vicente da Silva Filho, de 74 anos, coronel reformado da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) e professor de ciências policiais, argumenta que mesmo em casos de comoção nacional são raras as vezes em que os chefes da polícia, ou secretários de Segurança Pública, são responsabilizados .

Segundo Vicente, as autoridades são responsabilizada apenas em caso de omissão envolvendo agentes violentos ou em casos de execução de ações sabidamente perigosas para as comunidades e policiais envolvidos. 

O professor Alcadipani reitera que, diferente das polícias dos países mais desenvolvidos, as forças policiais brasileiras não tornam públicas as informações sobre os protocolos adotados , sob o argumento de evitar que o crime organizado seja alertado sobre as operações.

Ele explica que tal ação dificulta a responsabilização dos superiores por excessos cometidos em campo: “niguém sabe o que elas podem ou não fazer porque não há documentos públicos a respeito da atuação policial”.

Aumento da violência no Rio de Janeiro

“Um problema no Rio é que quase toda viatura de patrulhamento usa fuzil, arma geralmente imprópria para o policiamento comum. Em São Paulo esse tipo de armamento só é usado por forças táticas (como a Rota) com pessoal mais treinado para ações de alto risco”, explica o coronel Vicente.

O coronel também atribui o aumento da violência à concentração de fuzis em poder do tráfico de drogas. “A quantidade de armamento de guerra nas mãos das facções não tem paralelo em nenhuma país democrático. As estimativas vão de 10 a 30 mil fuzis de combate”, argumenta.

Para o professor Alcapidani, o uso de fuzis como forma de equiparar o poder das forças policiais com o das facções também é um dos fatores que estimulam a letalidade policial

“O fuzil é restrito nas demais forças de segurança do mundo, somente as unidades especiais podem portar. O policial precisa ser extremamente treinado para saber quais são as consequências de um tiro de fuzil. No Rio de Janeiro, o estado não age de forma inteligente para retirar os fuzis das mãos dos traficantes e por outro lado os policiais aparentam não ter preparo para utilizar o fuzil que eles portam. O treinamento de fuzil tem que ser semanal e com acompanhamento psicológico sério”, afirma.

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