Opinião

O dia em que Bolsonaro plantou as sementes de um Estado policial

Era permitido grampear telefones de pessoas consideradas inimigas do governo

Por Ricardo Noblat

Quem não lembra? Foi a única vez que as entranhas do Poder foram expostas em carne viva. Bolsonaro e seus ministros sentados à mesa semioval de um dos salões do Palácio do Planalto; Bolsonaro apoplético, a queixar-se da falta de informações confiáveis para que pudesse governar; ministros tensos com os gritos que ouviam.

Os trechos mais explosivos da reunião gravada foram ao ar na TV e no rádio por decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. E confirmaram a suspeita compartilhada por muitos: estava nascendo no Brasil um Estado policial. Ou melhor: Bolsonaro plantava as sementes de um Estado policial.

O dia 22 de abril de 2020, quando a pandemia do Covid começava sua colheita de vidas ante a falta de resistência do governo, foi a porta que se abriu para a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, a entrada no seu lugar de André [terrivelmente evangélico] Mendonça e a ascensão do delegado Alexandre Ramagem.

Moro foi embora acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal. As provas? Bolsonaro forneceu-as ao dizer coisas do tipo:

“Prefiro não ter informação do que ser desinformado pelo sistema de informações que eu tenho”.

“Já tentei trocar gente de segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! Não estamos aqui pra brincadeira”.

“Eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção. […] Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a Polícia Federal que não me dá informações. Eu tenho a inteligência das Forças Armadas, mas não tenho informações. A Abin [Agência Brasileira de Inteligência] tem os seus problemas, tenho algumas informações.”

“Quem é que nunca ficou atrás da porta ouvindo o que seu filho ou sua filha estava comentando? Depois que ela engravida, não adianta falar com ela mais. Depois que o moleque encheu os cornos de droga, já não adianta mais falar de droga com ele. […] Eu estava estudando no fim de semana como é que o serviço chinês, secreto, trabalha nos Estados Unidos”.

Bolsonaro tentou nomear Ramagem, que cuidou da sua segurança pessoal depois da facada em Juiz de Fora, mas o ministro Alexandre de Moraes não deixou. Então, Bolsonaro anunciou que desrespeitaria a ordem de Moraes, e aí foram os militares que não deixaram. Ramagem, hoje, é deputado federal. E a Abin…

A Polícia Federal descobriu que a Abin, à época de Ramagem, fez parte de um sistema particular de segurança e de informações de Bolsonaro engrossado mais tarde pela Polícia Rodoviária Federal, o Ministério da Justiça sob o comando de Anderson Torres e os serviços de inteligência do Exército.

A Abin adquiriu um software israelense de monitoramento de localização de celulares em 2018, no fim do governo Michel Temer, por R$ 5,7 milhões. A ferramenta chama-se FirstMile e permite rastrear os dados de GPS de qualquer pessoa pelos dados transferidos de seu celular para torres de telecomunicação.

Naquele ano, o mesmo software foi comprado pelo Exército durante a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. A Polícia Federal identificou o uso do software pela Abin cerca de 33 mil vezes. Desse total, 1.800 teriam como alvos políticos, jornalistas e adversários do governo Bolsonaro.

O software permite realizar consultas de até 10 mil celulares a cada 12 meses. Para iniciar o rastreio, basta digitar o número de celular da pessoa. O programa cria um histórico de deslocamentos e permite a criação de “alertas em tempo real” da movimentação de alvos em diferentes endereços.

Em uma democracia, e ainda é o caso do Brasil, escuta telefônica só pode ser feita com autorização da Justiça. Em um Estado policial, não, ela é feita à vontade de quem manda. Quem mandava no governo era Bolsonaro, o dono da caneta mais cheia de tinta da República, que se referia ao Exército como “meu Exército”.

Ricardo Noblat é jornalista

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