Opinião

Assédio processual: é necessário falar mais sobre isso.

Um dos grandes desafios do judiciário brasileiro com certeza é a morosidade causada muitas vezes por uma deficitária estrutura no que toca a quantidade de servidores em relação a uma crescente quantidade de demandas.

Quem advoga sabe o quão frustrante é o famoso ‘ganhar e não levar’. A obrigação ética é alertar o cliente sobre todos os percalços que um litigante de má fé é capaz de criar para impedir ou retardar o cumprimento de uma ordem judicial.

E isso tudo porque a legislação processual permite uma série de recursos que muitas vezes não têm fundamento e têm a clara intenção de protelar o feito.

Cumpre exemplificar: uma pessoa é consagrada vencedora de uma demanda indenizatória com base em provas testemunhais e documentais robustas.

A outra parte embarga de declaração e depois apela dessa sentença. Só nessa toada, já se passou um ano, dependendo do Tribunal de Justiça.

A parte alega em seu apelo uma serie de nulidades processuais que ela diz terem ocorrido no decorrer da demanda, situação esta que de acordo com o CPC em vigor deveriam ter sido alegadas na primeira oportunidade em que lhe cabia falar nos autos, sob pena de preclusão. Mas na época processualmente correta, ela não o fez.

Mesmo diante da preclusão, a parte apela alegando a nulidade. E diante do indeferimento do apelo, embarga de declaração e ante a rejeição dos embargos, faz agravo interno, seguido por novos embargos, Resp, Agravo de Instrumento para fazer o Resp ter seguimento junto ao STJ e assim por diante.

Enfim, ao chegar no STJ, a parte passa a travar uma verdadeira batalha para provar a nulidade cujo prazo de alegação, cumpre repetir, prescreveu. Seu intento recursal, portanto, não tem como lograr êxito.

Opõe novos embargos de declaração, novo agravo interno seguido de mais embargos de declaração sucedidos por embargos de divergência…

No caso hipotético a parte chega a ser condenada ao pagamento de multa em função dos recursos protelatórios. Entretanto, para ela, a condenação no pagamento de uma multa não lhe prejudicará já que ela conseguiu no início da demanda a concessão da assistência judiciária e usando isso, quer vencer pelo cansaço.

O jurisdicionado prejudicado pela litigante de má fé, passados anos desde a prolação da sentença que lhe consagrou vencedor, a essa altura já perdeu a fé na justiça.

Diante de situações como esta, o STJ consolidou o entendimento de que configura “assédio processual” a conduta contrária a boa-fé, consubstanciada no ajuizamento sucessivo de diversas ações/remédios processuais com fins meramente tumultuários ou protelatórios.

No entanto, cumpre trazer aqui um pano de fundo de suma relevância: a atuação dos operadores do direito que praticam tal aberração processual.

Resta óbvio que a intenção do mandatário em uma situação como esta é protelar o trânsito em julgado mas quais os limites éticos de quem atua nesse sentido mesmo conhecendo ou devendo conhecer o conceito de assédio processual?

No julgamento do REsp 1.817.845, sob relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, a tese vencedora, desenvolvida pela ministra Nancy Andrighi, define que “o ajuizamento de sucessivas ações judiciais, desprovidas de fundamentação idônea e intentadas com propósito doloso, pode configurar ato ilícito de abuso do direito de ação ou de defesa, o denominado assédio processual”.

O referido Resp teve origem em um caso que houve uma determinação da partilha e homologação de divisão de terras e a parte que não tinha interesse em dividir o bem com a outra, ajuizou diversas demandas com o fim de procrastinar ao máximo a efetivação da decisão referida (como ação de usucapião, embargos de terceiros, obrigação de fazer e, ainda, um procedimento administrativo), de modo que a área objeto da demanda apenas foi restituída  mais de 16 anos do trânsito em julgado da decisão.

Importantíssimo dizer que embora o jurisdicionado esteja investido do direito fundamental de acesso à Justiça, ele não está autorizado a propor qualquer demanda ou recurso sem cabimento, apenas com o intuito de protelar o trânsito em julgado.

Ademais, os direitos garantidos pela Constituição Federal não podem ser arguídos com propósitos inadequados! Afora isso, “as  garantias processuais não protegem e não legitimam práticas abusivas. Elas visam a proteger direitos, não a legitimar condutas injustas e nocivas1”. E mais:

“Garantias devem prevenir abusos processuais, mas elas mesmas podem ser objeto de abuso: a afirmação de uma garantia não é suficiente, infelizmente, para prevenir abusos. Por outro lado, abusos devem ser prevenidos justamente a fim de tornar efetivas as garantias, haja vista que procedimentos em que ocorrem abusos não correspondem aos padrões de lealdade e devido processo.

Assim: garantias e ADP [abuso de direitos processuais] não se excluem. A questão é muito mais complexa e lida com o grau de realização de garantias e o grau de prevenção de abusos em diversos sistemas legais.” (TARUFFO, 2009, p. 166).

Cumpre colacionar a brilhante lição de Ada Pellegrini Grinover2 sobre o tema:

“Mais do que nunca, o processo deve ser informado por princípios éticos. A relação jurídica processual, estabelecida entre as partes e o juiz, rege-se por normas jurídicas e por normas de conduta. De há muito, o processo deixou de ser visto como instrumento meramente técnico, para assumir a dimensão de instrumento ético voltado a pacificar com justiça.”

A tese levantada pela Ministra Nancy no Resp de relatoria do Ministro Paulo de Tarso, felizmente tem ganhado contornos relevantes nos tribunais estaduais. E sinceramente, a referida tese é uma verdadeira ode à ética, à boa fé e ao princípio da efetividade processual. A intenção também é muito clara: reestabelecer a fé em um dos poderes que alicerçam a democracia.

O sujeito que move toda a estrutura judiciária com o simples e antiético escopo de aferir alguma vantagem causa um prejuízo social. Movimenta uma máquina que deve ser usada para os propósitos da justiça e jamais para interesses escusos. E mais: desperdiça tempo e erário público que poderiam ser usados por quem realmente precisa.

Neste sentido insta novamente destacar a participação do causídico, vez que na condição de profissional do direito detém maiores conhecimentos técnicos e jurídicos que a parte que representa e portanto, sabe que apesar do notório desejo da cliente em postergar o feito, não há mais caminho processual a seguir e mesmo assim lança mão de recursos procedimentais sem fundamento e que não têm como prosperar.

Nesse pormenor, o procurador acaba por “canalizar” a má-fé da parte.

Infelizmente, o sistema processual não responsabiliza, diretamente, o advogado por litigância de má-fé, impondo a ele, tão somente, o dever de lealdade previsto no art. 14 do CPC, fazendo com que a parte arque com as implicações que, porventura, sejam advindas de seu comportamento desleal. Ou seja, um cenário confortabilíssimo à recorrente

Entretanto, dispõe o art. 32 do Estatuto, bem como seu parágrafo único:

“Art. 32. O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.

Parágrafo único: Em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria.”

Portanto, ao consolidar a má-fé de seu cliente o advogado passa a infringir o Estatuto da Advocacia, pois toma para si a responsabilidade pela improbidade processual.

Cabe à OAB investigar e punir se for o caso quem viabiliza esse tipo de postura que claramente fere dispositivos do Código de Ética tais como os arts. 32 e 34. E mais, cabe aos julgadores, ao enxergar tais aberrações, no afã de reestabelecer a fé social no sistema judiciário, deferir pedidos de comunicação à ordem.

É preciso um movimento de todos os operadores que se importam com o real e absolutamente indispensável papel do judiciário em repelir e punir quem canaliza e concretiza esse tipo de intenção processual.

RepórterMT

Janaina Mathias Guilherme é advogada formada pela Universidade de Uberaba, especialista em Direito Civil e Processual Civil e em Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Goiás, sócia da banca Janaina Mathias Guilherme Assessoria e Consultoria Jurídica.

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