Opinião

Carta aberta à artista palestina Heba Zagout

Nenhum holocausto no mundo pode justificar a tirania de antigas vítimas sobre outros povos, outras culturas e outras gerações

Não te conheci pessoalmente, Heba. Mas, sabemos bem do sofrimento do teu povo, desde a criação unilateral do Estado assassino de Israel. Porque sabemos, também, que nenhum holocausto no mundo pode justificar a tirania de antigas vítimas sobre outros povos, outras culturas e outras gerações. Se existe, hoje, uma ideologia que se aproxima terrivelmente do fascismo, ela se chama sionismo.[1]

Nós, que acreditamos de fato na humanidade, precisamos combatê-la em todas as frentes. E você, Heba, pertence ao povo de refugiados mais antigo do planeta desde o final da Segunda Guerra Mundial. Por isso, nosso padre Julio Lancelotti defende a causa palestina com a mesma fé inquebrantável com que acolhe e cuida dos refugiados internos das guerras urbanas não declaradas no Brasil, desde que aqui começou sua missão, há meio século.

Heba, um dos últimos quadros que você desenhou e pintou, com o esmero e inspiração de sempre, me comoveram muito, sabia? Na simplicidade pacífica e harmoniosa de “Jerusalém é minha cidade” (2022),[2] nós todos podemos sonhar com um ideal de cidade tão distante daqueles espaços belicosos em que somos jogados e transportados todos os dias. Não conheci Jerusalém, Heba. Mas posso compartilhar do sonho que a imagem delicada dessa tua pintura pode nos trazer aqui, neste Ocidente cheio de arrogâncias, violências e blasfêmias.

Aliás, parece mesmo que a sanha assassina de Bibi Netanyahu e seus comparsas é muito mais ocidental, em seu exibicionismo bélico e em seu gosto vampiresco em comer sangue. Já reparou nos olhos e dentes desse anjo exterminador do presente? Idem, Biden Gagá. O senhor do Império Decrépito perdeu seus anéis faz tempo, e gagueja pragas incompreensíveis, enquanto faz a contagem regressiva de sua próxima derrota.

Quem nos resta, Heba? As mulheres árabes da minha cidade, São Paulo, que abriga comunidade palestina significativa, continuam na linha de resistência. Nossas e nossos melhores estudantes também resistem, Heba. Acabo de concluir minhas aulas na pós-graduação e na graduação da Unicamp, neste semestre, Heba, e pode estar certa de que o sacrifício de seu povo foi exaustivamente debatido em classe, e sua tragédia foi pranteada por muitas almas jovens igualmente desinformadas, mas felizmente sensíveis a uma causa simples e justa. E aprendemos, entre tantas coisas, o peso e o sentido da palavra Nakba, a catástrofe e êxodo do povo palestino, já tão antigo e tão dolorosamente atual!

Estamos sendo massacrados nos campos de batalha e na mídia facciosa dos genocidas, mas tenho a convicção de que, com a liberdade de nossos povos nos corações, venceremos, custe muito o que custar, essa guerra contra o povo palestino. Várias vezes por dia cruzo a praça Estado da Palestina, aqui no bairro do Paraíso, em São Paulo. Ela segue, no mais das vezes, vazia. Vez por outra surpreendo moradores de rua ali acampados, nessa identidade subterrânea entre todos os povos refugiados do mundo.

Como nos alertava, já há cerca de duas décadas, o sociólogo Zygmunt Bauman: cada vez mais, essa modernidade líquida ocidental e esse capitalismo ferozmente decadente estão a produzir e reproduzir, em escalas crescentes, refugos humanos por todo o planeta, que pairam como lixo inadministrável sobre as paisagens do que ora se denominou “a nossa civilização”.[3]

Mas não posso deixar de lembrar aqui, diante da tua presença e memória, das penas e gestos heroicos de todas as mães palestinas. Isso foi cantado em lamento fúnebre numa das manifestações pró-Povo Palestino aqui na praça Oswaldo Cruz, em São Paulo, há cerca de um mês. Assim, entendo perfeita e tragicamente que você não pode jamais desgrudar dos teus dois filhos quando vieram as bombas do Estado Assassino, na noite de 13 de outubro, lançadas por mais um ataque aéreo israelense. Vivem vocês agora na memória dos que seguem lutando. E na melhor lembrança de uma cidade pacificada que possa ser chamada de “nossa” em futuro próximo. Porque, “tua”, Heba, e das tuas crianças, ela sempre foi e continuará sendo.

*Francisco Foot Hardman é professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia paulista e os eternos modernistas (Unesp). [https://amzn.to/45Qwcvu]

Artigo transcrito do blog A Terra é redonda – https://aterraeredonda.com.br/

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