Opinião

Integração regional e moeda única: velhos dilemas, novos contextos

A integração regional é um projeto para a preservação da paz e da capacidade de os países buscarem trajetórias mais robustas de desenvolvimento

Por André Moreira Cunha, Andrés Ferrari e Luiza Peruffo

Em sua primeira viagem internacional do terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve na Argentina, onde reafirmou o compromisso de fortalecer os laços que unem os vizinhos sul-americanos. Na sequência visitou o Uruguai, com a clara determinação de preservar a unidade do Mercosul em meio às negociações de um acordo bilateral entre aquele país e a China. A integração regional, tanto no âmbito do Cone Sul, quanto no conjunto da América do Sul e mesmo com os demais países caribenhos e latino-americanos, é um sonho acalentado por diferentes gerações de líderes políticos, a começar pelo “libertador” Simón Bolívar

Em seu discurso de posse foi delineada a visão estratégica do governo. Nas palavras do presidente diante do Congresso Nacional, a força do Brasil no plano internacional se alicerçaria em sua capacidade de assentar bases sólidas de integração regional. In verbis: “Nosso protagonismo se concretizará pela retomada da integração sul-americana, a partir do Mercosul, da revitalização da Unasul e demais instâncias de articulação soberana da região. Sobre esta base poderemos reconstruir o diálogo altivo e ativo com os Estados Unidos, a Comunidade Europeia, a China, os países do Oriente e outros atores globais; fortalecendo os BRICS, a cooperação com os países da África e rompendo o isolamento a que o país foi relegado.”.

A integração para Lula não se restringe ao objetivo de potencializar o comércio exterior ou de ampliar vínculos produtivos e financeiros. Estes não são fins em si, mas meios para viabilizar a projeção internacional do país e de seus vizinhos. Isolados os países da região são mais fracos do que unidos, especialmente em um mundo que transita de situação de elevada concentração de poder em um único Estado para outro, onde novos polos emergem e se consolida uma realidade geopolítica distinta. Tal transição será tudo menos pacífica, como já se observa na Ucrânia.   

Celso Amorim, ex-chanceler dos primeiros dois mandatos de Lula, nos oferece uma análise rica sobre os desafios para se consolidar a integração sul-americana no seu livro mais recente, “Laços de confiança – O Brasil na América do Sul”. O título resume bem parte essencial deste enredo complexo: há um déficit de confiança, tanto entre os países, quanto dentro deles. A literatura especializada há muito destaca os problemas derivadas da fragilidade e da instabilidade com que os Estados nacionais latino-americanos se formaram, do peso dos interesses forâneos, do caráter rentista das elites locais e das dificuldades em se criar agendas políticas e sociais que tratem da inclusão social e da democracia como vetores-chave, para citar alguns. Tais elementos são recorrentes na história e tornam o integracionismo uma espécie de trabalho de Sísifo: sempre que se avança em sua direção, mudanças na política local, influências externas ou fatores produzem a necessidade de recomeços, os quais nem sempre criam horizontes promissores.

Isto não implica, por óbvio, que não se deva tentar tantas vezes quantas se mostrem necessárias. E este nos parece ser o recado central do presidente Lula nos dias em que circulou no Cone Sul. Além das conversas com os presidentes da Argentina e do Uruguai, ele participou ativamente da reunião da VII Cúpula da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). A CELAC foi criada em 2010, no auge da “onda rosa” latino-americana. Tratava-se de um claro contraponto à interferência dos Estados Unidos em outras instituições regionais, algumas das quais vetavam, por razões políticas, países não alinhados com os interesses estadunidenses. Sua origem remonta à criação do Grupo do Rio (GRIO, 1986) e à Cúpula da América Latina e Caribe sobre Integração e Desenvolvimento (CALC, 2008).

No governo do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), o Brasil deixou de participar deste organismo sob a alegação de que o mesmo abrigava regimes não democráticos. Por isso mesmo, o atual mandatário brasileiro fez questão de enfatizar o retorno do país ao convívio amplo e plural com as demais nações latino-americanas e caribenhas, e seu empenho em resgatar vínculos sólidos de solidariedade com os seus povos. Para o Brasil é um recomeço. No dia anterior ao início da Cúpula da CELAC, Lula e Fernandez assinaram uma declaração conjunta onde reafirmaram o compromisso com a preservação da democracia, enfatizaram a importância do Mercosul como projeto estratégico de integração e demarcaram a necessidade de fortalecer as economias nacionais e as suas conexões comerciais, produtivas, tecnológicas, institucionais e culturais. Segurança sanitária, meio ambiente, pobreza, direitos sociais, luta pela igualdade e a diversidade em vários níveis são temas que emergiram nos seus oitenta e dois itens. 

Todavia, nada provocou maior repercussão do que a menção ao interesse de construir uma “moeda única” para uso regional. Um velho tema em um novo contexto. Em seu item 20 os presidentes concordam em: “… iniciar estudos técnicos, incluindo os países da região, sobre mecanismos para aprofundar a integração financeira e mitigar a escassez temporária de divisas, incluindo mecanismos a cargo dos bancos centrais. Compartilharam também a intenção de criar, no longo prazo, uma moeda de circulação sul-americana, com vistas a potencializar o comércio e a integração produtiva regional e aumentar a resiliência a choques internacionais.” (grifos nossos). Nos itens 21 e 22, o documento exorta os bancos de fomento a financiar projetos estratégicos para a integração e a ampliação do comércio regional.

 Cooperação Financeira e Moeda Única: realidades e ilusões

As economias periféricas não possuem moedas conversíveis internacionalmente. Elas não são aceitas – ou tal uso é muito restrito – para liquidar contratos celebrados entre pessoas físicas, jurídicas e governos do resto do mundo. Por decorrência, tais países precisam utilizar moedas e instrumentos financeiros emitidos e geridos por outras jurisdições para manter seus diversos vínculos globais. Tal fenômeno foi denominado por Ricardo Hausmann com  um “pecado original”

A principal plataforma global de pagamentos (SWIFT) registra (dezembro de 2022) que 87% dos pagamentos internacionais por ela realizados se concentraram em quatro moedas: dólar (42%), euro (36%), libra (6%) e iene (3%). O iuane chinês, principal moeda dos países emergentes e emitida por um Estado sólido de uma economia globalizada, que é maior exportadora do mundo e o segundo maior produto (PIB) em valores correntes, responde por pouco mais de 2% dos pagamentos. O peso mexicano, única moeda latino-americana entre as vinte mais utilizadas, abarca ínfimos 0,2% das transações. 

No plano doméstico são os Estados que determinam quais instrumentos (moedas e contratos nelas denominados) são legalmente aceitos para a realização das diversas transações econômicas. Já para as transações internacionais não existe um poder equivalente, um Estado mundial capaz de impor coercitivamente o uso desta ou daquela moeda. São as pessoas, empresas e entes estatais que escolhem quais são os instrumentos mais seguros e convenientes para os seus fins. Tal eleição não é aleatória, de tal sorte que há moedas amplamente utilizadas, pois são consideradas mais “líquidas” e “seguras”, na medida em que refletem o poder e a estabilidade de seus Estados emissores. 

A reunião de Estados com níveis inferiores de poder e que emitem e gerem moedas não conversíveis internacionalmente, por mais bem intencionados que sejam seus líderes, não é capaz de per se produzir uma nova moeda, agora forte e confiável, ou mesmo de alavancar mecanismos de cooperação financeira que reduzam significativamente a dependência relativa das moedas conversíveis. Podem ser produzidos estudos técnicos rigorosos e detalhados sem que isso altere a rígida hierarquia monetária e financeira global. Bons discursos não invertem a pirâmide monetária descrita por Susan Strange e Benjamin Cohen.

Depois de vencer duas guerras mundiais e de ver seus aliados, especialmente o Reino Unidos, perderem poder relativo, os EUA se consolidaram como o maior poder global e sua moeda, o dólar, passou a funcionar como “a moeda internacional” de facto. Até aqui, nenhum outro instrumento surgiu com força para alterar o status quo, nem mesmo o euro, cujas fragilidades de ser “uma moeda sem um Estado” foram anunciadas por críticos comCharles Goodhart e Philip ArestisO dólar representa 2/3 dos instrumentos de dívida, empréstimos bancários e reservas internacionais existentes globalmente, a despeito de a economia estadunidense participar com pouco mais de 20% da renda mundialNa mais recente pesquisa Trienal do BIS sua liderança é sólida. Estimou-se em US$ 7,5 trilhões o giro diário das operações cambiais. Instrumentos em dólar representam metade daquele montante. Da mesma forma que nos registros mensais dos pagamentos internacionais realizados por meio da plataforma Swift. 

A declaração conjunta de Fernández e Lula aponta na direção correta no que se refere à importância de se tentar revigorar mecanismos regionais de cooperação financeira. Todavia, isoladamente tal iniciativa não garantirá uma retomada robusta das relações comerciais bilaterais. Argentina e Brasil vêm de um longo período de crescimento baixo e volátil, pelo menos desde a crise da dívida externa, em 1982. Entre 2001 e 2019, antes da pandemia, a taxa média de crescimento da renda per capita de ambos foi de 1,1% a.a. e de 1,3% a.a., respectivamente. Na Argentina, o desvio padrão deste crescimento chegou a 6,1% contra 2,8% do Brasil. Nos dois casos, o desvio maior do que a média indica claramente a enorme volatilidade. 

Dito de outra forma, é patente a incapacidade destas economias em manterem trajetórias robustas e estáveis de expansão. Para se colocar em perspectiva, segue o crescimento médio anual e o desvio-padrão de um conjunto diverso de regiões no mesmo período: Ásia-Pacífico (7,3% e 1,3%), Sul da Ásia (4,9% e 1,5%), África Subsaariana (1,8% e 1,6%), Oriente Médio e Norte da África (1,8% e 2,3%), Europa do Leste e Ásia Central (3,8% e 3,5%) e os países de alta renda (1,1% e 1,5%). O desempenho de Argentina e Brasil só não foi pior do que seus vizinhos latino-americanos e, em alguma medida, de que as economias avançadas, que apresentaram baixo dinamismo, mas em um contexto onde os níveis médios de renda são cinco vezes superiores aos dos países âncora do Mercosul.

É antigo o sonho de uma moeda única para o Mercosul, conforme tratamos em artigos acadêmicos que refletem pesquisas iniciadas nos anos 1990. Da mesma forma, não são novos os esforços de cooperação financeira regional e a pretensão de alguns em ver o Brasil como um líder regional na área financeira, temas tratados pela Profa. Luiza Peruffo em sua dissertação de mestrado, na UFRGS, e tese de doutorado, na Universidade de Cambridge. Aprofundar a cooperação financeira regional, ampliar e fortalecer os instrumentos de crédito, de compartilhamento de risco e outros são iniciativas mais do que bem-vindas, desde que as mesmas sejam colocadas na devida perspectiva: não são panaceias, não farão milagres e não resolverão os inúmeros problemas econômicos, políticos e institucionais que dificultam a integração regional. São meio que podem ajudar na integração, mas que isoladamente pouco farão para consolidá-la.

O aspecto mais relevante da declaração conjunta e das manifestações recorrentes do Presidente Lula é a necessidade de se perceber a integração regional como um projeto político estratégico para a preservação da paz e da capacidade de os países da região buscarem trajetórias mais robustas de desenvolvimento econômico, social, político e institucional em bases democráticas e em um mundo onde as disputas pelo poder global criam pressões negativas adicionais sobre os nossos países. 

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

 

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